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quinta-feira, 2 de maio de 2013

Variedade infinita dos seres - As metamorfoses II

 Olá,

... Momentos depois, atravessando outro sistema, encontramos um gênero de organizações inteiramente diverso e, com segurança, superior ao nosso.
Nos habitantes do planeta que tínhamos então sob os olhos, mundo iluminado por brilhante sol hidrogenado, o pensamento não é obrigado a passar pela palavra para manifestar-se.
Quantas vezes não tem acontecido, quando uma idéia luminosa ou engenhosa nos vem ocupar o cérebro, querer


exprimi-la ou escrevê-la, e, durante o tempo em que começamos a falar ou escrever, sentir já a idéia dissipada, esvaída, obscurecida ou metamorfoseada?
Os habitantes desse planeta possuem um sexto sentido, a que se poderia chamar autotelegráfico, em virtude do qual, se o que pensa a isso não se opõe, o pensamento se comunica ao exterior e pode ser lido em um órgão situado mais ou menos no mesmo lugar da fronte humana.
Essas conversações silenciosas são muitas vezes as mais profundas e as mais preciosas; são sempre as mais sinceras.
Somos ingenuamente dispostos a crer que a organização humana nada deixa a desejar na Terra. Entretanto, não temos muitas vezes lamentado ser a criatura obrigada a ouvir, mal grado seu, palavras desagradáveis, um discurso absurdo, um sermão orgulhoso em vácuo, música péssima, maledicências ou calúnias?
As nossas gramáticas têm pretendido que podemos fechar os ouvidos a esses discursos, assim não é, infelizmente. Não podemos fechar os ouvidos, tal qual fechamos os olhos.
Há aí uma lacuna. Fiquei surpreendidíssimo de assinalar um planeta onde a Natureza não esqueceu essa particularidade.
Porque nos houvéssemos detido nele um momento, mostrou-me Urânia esses ouvidos que se fechavam à maneira de pálpebras e interceptavam radicalmente a transmissão do som.
 Há aqui, disse-me ela, muito menos cóleras surdas do que entre vós outros; mas as dissidências entre os partidos políticos são muito mais acentuadas, não querendo os adversários ouvir coisa alguma, e triunfando efetivamente, apesar dos mais loquazes advogados e dos tribunos dotados de melhores pulmões.
Em outro mundo, cuja atmosfera está constantemente eletrizada, cuja temperatura é muito alta, e onde os habitantes têm tido quase ou nenhuma razão suficiente para inventar vestimentas, certas paixões se traduzem pela iluminação de uma parte do corpo.
É, por analogia, o que se passa, em menor escala, em nossas campinas terrestres, onde se vêem, durante as serenas noites de estio, os pirilampos consumindo-se, silenciosamente, em amorosa flama. O aspecto dos casais luminosos é curioso de observar, à noite, nas grandes cidades.
 A cor da fosforescência difere segundo os sexos, e a intensidade varia segundo as idades e os temperamentos.
O sexo forte acende uma flama vermelha, mais ou menos ardente, e o sexo gracioso uma flama azulada, às vezes pálida e discreta.
 Só os nossos pirilampos poderiam formar uma idéia, muito rudimentar, da natureza das impressões sentidas por esses entes especiais.
Não queria eu dar crédito a meus olhos quando atravessávamos a atmosfera de tal planeta; porém, ainda muito mais surpreendido fiquei, chegando ao satélite desse mundo singular.
Era uma lua solitária, iluminada por uma espécie de sol crepuscular. Sombrio vale ofereceu-se aos nossos olhares.
Das árvores disseminadas nos dois lados pendiam criaturas humanas envoltas em sudários.
Tinham-se elas mesmas atadas aos ramos, pela cabeleira, e dormiam ali no mais profundo silêncio.
 O que eu tomara por sudários era um tecido formado pelo alongamento dos cabelos emaranhados e encanecidos. E porque me admirasse de semelhante posição, disse Urânia que era aquele o seu modo habitual de sepultamento e de ressurreição.
Sim, naquele mundo os entes humanos gozam da faculdade orgânica dos insetos, que têm o dom de dormir no estado de crisálida para se metamorfosearem em aladas borboletas.
Há nisso uma espécie de dupla raça humana, e os estagiários da primeira fase, os seres mais grosseiros e materiais, não aspiram senão a morrer, para ressuscitar na mais esplêndida das metamorfoses.
 Cada ano desse mundo representa cerca de dois séculos terrestres. Vivem-se ali dois terços de ano em estado inferior, um terço (o inverno) em estado de crisálida e, na primavera seguinte, sentem, os suspensos, gradualmente a vida voltar à carne transformada; agitam-se, despertam, deixam a carcaça na árvore e, desprendendo-se, maravilhosos entes alados voam nas regiões aéreas, para viver aí um novo ano fenixiano, isto é, duzentos dos de nosso rápido planeta.
Atravessamos, assim, grande número de sistemas e parecia-me que a eternidade inteira não teria sido bastante longa para permitir-me gozar de todas essas criações desconhecidas na Terra; mas meu guia me deixava apenas o tempo para respirar, e novos sóis e mundos continuavam aparecendo.
 Em nosso trajeto tínhamos quase abalroado uns cometas transparentes que erravam, quais sopros, de um a outro sistema, cujas Humanidades teriam sido novos assuntos de estudo.
 Os cinco pobres sentidos incompletos, que constituem a nossa bagagem orgânica, são verdadeiramente insignificantes à riqueza de percepções dos seres munidos de quinze, dezoito e mesmo vinte e seis sentidos diferentes, conforme constatamos em muitas terras do céu. No entanto, a musa celeste continuava a levar-me sem parar, sempre cada vez mais alto, cada vez mais longe, até que, enfim, chegamos ao que me pareceu o subúrbio do Universo.
Os sóis tornavam-se mais raros, menos luminosos, mais pálidos; a noite se fez mais completa entre os astros e em breve nos achamos no meio de verdadeiro deserto; os milhares de estrelas que constituem o Universo visível da Terra estavam afastados e reduzidos a uma pequena via-láctea, isolada no vácuo infinito.
– Eis-nos finalmente, exclamei, nos limites da Criação!
– Olha! respondeu-me ela, mostrando-me o zênite.

URÂNIA                         CAMILLE FLAMARION

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